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TEXTOS E ENTREVISTAS

ENTREVISTA

Entrevista realizada em 1 de Fevereiro de 2001

1Pode-nos dizer o seu nome, idade e graduação?
GS- Georges Stobbaerts, tenho 62 anos e atualmente sou 8º dan de Aikido conferido pela Dai Nippon Butoku Kai, cuja sede é em Kyoto no Japão, no mais antigo Dojo o Butokuden que depende directamente da família Imperial.
2Pode-nos descrever um pouco o seu percurso nas Artes Marciais?
GS- Penso que seria interessante abordar apenas o meu percurso em Portugal, pois os dados anteriores a este período podem ser encontrados na página da Internet do Ten Chi Internacional.

Hoje em dia toda a gente fala de Aikido, mas não nos podemos esquecer dos pioneiros, não falo de mim, mas de outros, que investiram e ajudaram realmente o Aikido a desenvolver-se na Europa e particularmente em Portugal. Eu tinha um aluno, Daniel Laurent, que era cinto verde ou laranja, já não me recordo, que veio para Portugal trabalhar, ainda antes do 25 de Abril, e procurou um dojo para praticar. O local que encontrou foi a Academia Portuguesa de Budo, que mais tarde se tornou na União Portuguesa de Budo e onde, também mais tarde, vim a desempenhar funções de Director Técnico para o Aikido. Este era o único local, na altura, onde se praticavam Artes Marciais em Portugal. O Aikido nessa época não existia em Portugal. Havia Judo, mas reinava alguma confusão em torno dele, entre o Judo de competição e o tradicional, o Budo era mal compreendido, não se sabia se era ou não desportivo. Foi uma época difícil.

Entretanto, o Daniel Laurent, escreveu-me para Marrocos, onde eu vivia e foi lá ter comigo. Disse-me que tinha encontrado um dojo em Portugal e que a direcção pretendia fortemente uma demonstração de Aikido. Então vim a Portugal, a convite da União Portuguesa de Budo e fiz a primeira demonstração de Aikido em Portugal, já não me lembro do ano, mas fui muito bem recebido e eles gostaram bastante. Pediram-me depois para fazer um curso de iniciação ao Aikido. Juntamente com o Daniel Laurent, que ainda tinha um nível muito baixo de Aikido, e outros, começámos então a ensinar umas coisas simples como as quedas, tai sabaki, etc. A partir daí comecei a vir cá regularmente fazer estágios e dar aulas. Esta foi a primeira fase, foi o início. Depois seguiu-se a segunda fase.

A União Portuguesa de Budo começou a ter problemas. Dizia-se muita coisa da União Portuguesa de Budo, havia até alguma desconfiança política, embora eu pense que era apenas um grupo de pessoas que seguiam uma determinada linha de Budo. No seu seio começaram a haver divisões entre o que era desportivo e o que não era. Quer no Karate, quer no Judo. O Judo desportivo era representado pelo Mestre Kobayashi, que não foi o introdutor do Judo em Portugal, pois antes dele já outras pessoas tinham cá estado pela mão da União Portuguesa de Budo.

O Judo seguiu um rumo diferente do Budo, infelizmente, perdendo a sua essência, de tal forma que hoje nem se pode falar no Judo como uma arte do Budo. Houve cisões e fortes conflitos no Judo.

Entretanto o Daniel Laurent regressou a França, mas eu deixei cá dois alunos portugueses, que mantiveram um contacto bastante forte comigo, eram o Sr. Manuel Pereira e o Sr. Fernando Sotto Mayor, um era engenheiro e o outro médico. Vinham regularmente ao meu dojo em Marrocos e eu próprio vim a Portugal para organizar o primeiro estágio internacional de Aikido, em 1968, sob a égide da União Portuguesa de Budo. Convidámos pessoas de vários países e o estágio decorreu numa quinta em Bucelas, propriedade do Sr. Corrêa Pereira, Presidente da União Portuguesa de Budo. Fizemos também uma demonstração em directo para a televisão.

Nessa altura o Judo e o Karate eram facilmente aceites e compreendidos, mas o Aikido não, achavam-no estranho e não era fácil andar vestido de hakama (Risos). Então, de certa forma, foi preciso impor o Aikido em Portugal. Na demonstração de Aikido, em directo, houve um ataque frontal das outras artes ao Aikido, mas muitas destas pessoas acabaram por ficar nossas amigas. Foi mesmo o princípio, essa época foi formidável. Passámos por todas as etapas. Depois disso o Sr. Eng. Manuel Pereira estruturou um pouco o Aikido e disseram-me que viesse em definitivo para Portugal. Eu tinha também convites para ir para os Estados Unidos, São Francisco, Espanha, mas aconselharam-me a vir mesmo para Portugal. E foi por isto tudo que acabei por vir para Portugal. Chegámos também a fazer várias demonstrações em todo o país, por vezes num chão de betão ou madeira, porque na época não havia tatamis. Restam poucos alunos dessa época formidável, pois alguns morreram, outros casaram-se e a vida levou-os a seguirem outro caminho.

Tinha-se, entretanto, desenvolvido um outro pequeno grupo de praticantes de Aikido, diferente do nosso, dentro da União Portuguesa de Budo, com uma certa tendência para seguir a linha do Mestre Hirokazu Kobayashi. Eu conhecia-o bastante bem, porque estive cerca de um mês no seu dojo em Osaka, onde cheguei mesmo a dar aulas. A forma do Aikido do Kobayashi era bastante quadrada e não correspondia à minha forma, ao meu ideal. Ele era um bom especialista e uma boa pessoa. Chegou a pedir-me para ser seu representante aqui em Portugal, mas eu não aceitei, porque a forma dele não era aquela que eu pretendia. Então haviam dois pequenos grupos, um com o estilo do Kobayashi e outro com o meu.

Portanto, havia em Portugal duas escolas, uma na União Portuguesa de Budo e a outra éramos nós, mas todos praticavam juntos. Eu cheguei mesmo a ser o Director Técnico da União Portuguesa de Budo, durante algum tempo e fizemos trocas de alunos durante muito tempo, eu enviava cá os meus alunos e haviam alunos da União que iam a Marrocos. Por exemplo, o Vilaça Pinto, que era um excelente karateca e que fez nessa arte um excelente trabalho. Haviam ainda outros praticantes de Karate, aliás, posso dizer que o Karate nos ajudou um pouco. O Judo não, mas o Karate sim.

Enfim, é esta a história do Aikido em Portugal. Depois disto desenvolveu-se e os melhores alunos tornaram-se professores e surgiram vários dojo. Foi assim. Aconteceram tantas aventuras que davam para escrever um livro quem sabe, talvez um dia.

3Em que data precisamente é que o Mestre se fixou em Portugal?
GS- Durante muito tempo ainda fiz ponte entre Marrocos e Portugal, mas penso que me fixei definitivamente a partir do momento em que abri o dojo de Cascais, em 1972. O dojo de Cascais foi fundamental para isso. Nessa altura o ambiente no Aikido era muito bom, toda a gente praticava com toda gente, mesmo os alunos da escola do Kobayashi, como o Leopoldo Ferreira, que chegou a ser meu aluno, todos esses rapazes praticaram juntos, cada um com o seu carácter e temperamento próprio da juventude da sua época. Mais tarde houve aquilo que eu poderei chamar de massificação do Aikido e apareceram outras escolas, alguns anos depois. Antes de haver uma estrutura, uma associação, já se praticava o Aikido.
4Qual era a sua relação com as estruturas internacionais de Aikido?
GS- A estrutura, ao nível do Japão, funciona de uma forma piramidal. Nessa altura, no início, eu era delegado da Aikikai para Marrocos, mas quando o Mestre Morihei Ueshiba morreu fui-me embora. Conheci muitos Mestres dessa época. Conheci muito bem o Masamichi Noro, que adorei, também deixou o Aikikai, aliás, julgo que foi dos primeiros a fazê-lo, ele criou o Ki No Michi (A Via do Ki-ed.). Fui também uchideshi de Kiyoshi Nakakura Sensei, nas disciplinas de Kendo e Iaido. Era um Hanshi, 9º Dan de Kendo e de Iaido que se casou com Matsuko, filha do Mestre Morihei Ueshiba, tornando-se assim filho adoptivo do Fundador do Aikido, designado como seu sucessor e assumindo o nome de Morihiro Ueshiba, durante os 5 anos que passou no Kobukan Dojo. Nakakura Sensei recusou o convite do Aikikai para seguir o caminho de Ueshiba e praticou Kendo e Iai Do. Foi nessa altura que eu pratiquei com ele, pois segui Nakakura Sensei durante algum tempo, cujo trabalho com o Boken e o Sabre eram de um alto nível, reconhecido por todos os Mestres da época.

Relativamente à Aikikai houve sempre um intercâmbio. Um dos meus alunos em Marrocos, M'Barek Alaoui é, por exemplo, o Director Técnico da Federação de Aikido de Marrocos e é sétimo dan Aikikai. Ele vem cá regularmente, fazer estágios.

Quando eu estava no Japão, a Aikikai escondia um pouco a escola do Mestre Saito. Ninguém o conhecia e não se falava dele na Aikikai. Ele só começou a aparecer uns anos mais tarde. Mas conheci em Marrocos e na Europa, outros mestres também, como Tamura, Tada, Nakazano, Asai etc...

5Mas essas pessoas estavam a treinar no Japão quando lá esteve?
GS- Sim, sim, mas conheci outros na Europa, como Tadashi Abe e Aritoshi Murashige, que morreu num acidente de viação na Bélgica quando ia para dirigir um estágio. Estes foram os primeiros que conheci.
6Mas onde é que os conheceu?
GS- Na Bélgica. Eu também vivi na Bélgica, e noutros locais, não foi só em Marrocos. E portanto conheci um pouco o mundo do Aikido, principalmente os mais antigos, como o Nakakura, Murashige, Tadashi Abe, Tada, Tohei, Noro, etc. Este último contribuiu muito para o meu trabalho. Mas de Saito nunca tinha ouvido falar, pois o Aikikai nunca falava nele, talvez por isso nunca tenha tido contacto com ele. Eu trabalhava para a escola de Ueshiba, mas haviam outras escolas, porque depois da morte dele criou-se uma espécie de vazio. Havia André Nocquet e Portugal chegou a fazer parte da União Europeia de Aikido durante algum tempo, mas a orientação de Nocquet acabou por não ser seguida cá em Portugal. Ele também acabou por se desviar mais tarde. E foi nesse momento que regressei à minha origem, a Dai Nippon Butoku Kai.
7Pode-nos falar um pouco dessa ligação à Dai Nippon Butoku Kai?
GS- Já há muito tempo que tenho uma ligação com a Dai Nippon Butoku Kai, através de Mestre Kenshiro Abe, grande Mestre de Judo que me mostrou os primeiros elementos do Aikido. É um dos dojo mais antigos e é a organização mais antiga do Japão. Pratiquei várias artes lá. Recebi deles o meu primeiro dan de Kendo e Iai Do, assim como os meus vários diplomas de Judo. Contudo, estive durante muito tempo afastado dela, mas ultimamente voltei a ter uma forte ligação.

A nossa escola não está limitada apenas a um único ensinamento. O dojo está aberto a todos os ensinamentos, portanto, há especialistas que por cá passam de diversos prismas. É esse o espírito da escola, não estamos fechados. Essa é um pouco a minha história.

8O Yoga e o Zen, quando surgem no seu percurso?
GS- Eu comecei a praticar Judo quando ainda era muito novo e sempre me senti atraído por um Caminho. Quero dizer com isto que não ando à procura de uma prática desportiva, não sou desportivo. Sempre procurei dar um sentido à minha prática. Primeiro dar um sentido à minha vida e depois à minha prática. No meu Caminho encontrei o Yoga, que quanto a mim é a raiz de tudo e, mais tarde, o Zen. Foi o Zen que me permitiu compreender o Aikido. Por isso, posso dizer que, para mim, o conhecimento do Yoga é fundamental, porque é milenar, é a primeira postura no Budo, seiza. Conheci grandes mestres de Yoga. Comecei a partir daí a ensinar paralelamente o Yoga, julgo que é um bom equilíbrio. Pode-se dizer que se o Aikido é dinâmico, o Yoga é aparentemente estático, mas há qualquer coisa que os faz tocarem-se, algures.
9Como consegue conjugar o ensino das diversas artes?
GS- O movimento pode ser diferente, mas o pensamento é um só. Posso tocar piano e pintar quadros, por exemplo, estou a fazer duas coisas diferentes, mas o espírito é o mesmo. O Yoga e o Zazen estão mais orientados para a interiorização ou a meditação, enquanto o Aikido é uma forma de expressão... Hoje, por diversas razões, tenho a tendência de executar mais kokyu nage, do que técnicas de armas. Penso que já há armas demais na Terra. E eu que costumava dizer aos meus alunos, que utilizavam o jo, para o fazerem de uma forma cada vez mais dura, sólida e forte. Mas o que eu queria era um jo em cristal.

Eu creio que o kokyu nage e o aiki nage são a arte do Aikido. São a minha paixão e eu divirto-me, como uma criança ainda, quando faço kokyu nage. Para mim o aiki nage é o Aikido. Quando somos jovens não queremos passar pelo kotai, que é uma passagem obrigatória. Por isso, é perfeitamente possível interessarmo-nos pelo Yoga e pela sua tradição e sem fazer aquilo que eu chamo de Budo Bizarro. Não se deve misturar tudo Budo é Budo. Bu significa realmente parar as armas e o ideal seria nunca termos de desembainhar o sabre. Do é a Via, é o Caminho que devemos descobrir para nós próprios. Há que saber diferenciar. Asana é a postura. A etimologia da palavra postura significa, o local onde somos felizes. Há então uma relação com a Via, com o Do.

O espírito do Aikido é realmente japonês, é muito piramidal. A aproximação do Yoga é diferente, pois não há uma hierarquia tão forte como no Japão, onde é preciso ter muita atenção e cuidado com os rituais. Na Índia, é outro tipo de aproximação. Isto é verdade, é mesmo assim!

Não quero estar aqui a explicar o que é o Yoga, mas sim falar de dois percursos que se podem perfeitamente realizar em paralelo. Por um lado a abordagem japonesa, do samurai, por outro a do Yoga, do filósofo nu. Os gimnosufistas que os filósofos Gregos encontram nas epopeias de Alexandre "O Grande". Penso que estes dois caminhos podem ser complementares na evolução do Homem.

10Mestre, qual é a sua relação com a tradição da transmissão destas artes?
GS- Já que fala de transmissão e técnicas exactas, sabia que recebemos, no Dojo Tem Chi, em Julho de 1993, a Srª Takako Kunigoshi? Ela foi uma das raras praticantes femininas que praticaram no Kobukan Dojo de Tóquio. Foi muito respeitada por Ueshiba Sensei e em 1934 a pedido dele, fez pela primeira vez as ilustrações do Livro Budo Renshu, onde o Mestre Saito se inspirou para criar a sua metodologia. Este livro era dado aos alunos que podiam ensinar, como forma de Diploma de Docente. Ela foi uma grande praticante da antiga época, chegando mesmo a ensinar o Aikido. Tivemos em Ten Chi a oportunidade de trocar impressões com ela sobre o problema da transmissão de um gesto, que na sua essência se encontra nas outras Artes, como por exemplo o Ikebana ou a caligrafia.

Não podemos deixar que a tradição nos faça recuar. A tradição não é algo monolítico, que esteja preso no tempo, que fique bloqueado, que se cristalize. Eu creio que a tradição é algo de concreto que se vai polindo como o diamante e que deve estar viva. Não é bom estar-se sempre voltado para o passado. É preciso sabermos servir-nos dos antigos mestres, não para voltarmos para trás, mas para caminhar em frente. Eles deram-nos tudo para estarmos justamente presentes no presente, não para estarmos presentes no passado. Há que diferenciar a presença no presente, da presença no passado. Portanto, para mim, tudo está sob a tradição.

Se prestar atenção ao Judo actual, os praticantes já não sabem fazer os kata, preferem levantar pesos, fazer musculação. Tudo bem, mas a essência do Judo perdeu-se, e era bela, tal como o aiki. Por exemplo, vemos coisas horríveis nos Jogos Olímpicos, com judocas que quase batem nos árbitros. Tudo isso, na minha opinião, é um afastamento da tradição. O cerimonial perdeu-se.

É preciso saber o que é que se entende por tradição. É algo muito importante e que se deve compreender bem. Há algum perigo nas escolas japonesas que ainda vivem demasiado no passado. É preciso compreender bem que existe um espírito universal. Nós não podemos imitar os japoneses. Era a mesma coisa que quando respirasse, respirava o mesmo ar de um japonês, o Ki não pertence a uma nação, não se deve imitar como um papagaio ou um macaco. A vénia não se deve fazer só porque se deve fazê-la. É preciso saber porquê! Pois é isso que nos faz avançar. Executar um cerimonial sem saber o significado, faz-nos retroceder, pois tornamo-nos mecânicos, assumimos uma filosofia mecanicista. Acho que aí está algo que nos pode empurrar para a frente, não repetir os ritos só porque são ritos. É assim que eu entendo o sentido do cerimonial, que é a base de tudo, é o que nos situa no Universo, o que nos harmoniza com o que nos rodeia. É isso a tradição. Se imitarmos exageradamente, qualquer dia estamos a fazer uma operação plástica para ficarmos iguais a um japonês. (Risos)

Considero que as Artes Marciais são uma transmissão universal, logo, é algo que não é exclusivamente japonês, mas universal. Vamo-nos servir da tradição japonesa porque é realmente algo de extraordinário, de interessante, onde, como o Karma Yoga nos ensina, cada gesto é um instante, é uma presença, e aí está algo que nos interessa, compreende? Agora, se for só para imitar aquilo que os japoneses fazem ou fizeram, então deixa de ter interesse. Isto não é algo que toda a gente tenha compreendido com facilidade, mesmo os meus alunos tiveram essa dificuldade. Consegue compreender isto?

11Eu compreendo qualquer coisa, não sei é se é o mesmo que está a tentar que eu compreenda, mas vê-se já pela próxima pergunta. Se o Yoga, que é uma arte milenar, conseguiu ser preservada até aos dias de hoje, é porque a sua transmissão ao longo das gerações foi bem concreta, com limites muito bem definidos, ao contrário de todas aquelas em que isto não aconteceu. Concorda?
GS- É isso mesmo. Mas é preciso tomar atenção para não ficarmos numa forma estéril.

O Yoga não é de todo estéril, porque quando um yogi nos transmite um asana ou uma postura, ele próprio já assimilou realmente a sua forma. É preciso ter atenção à transmissão estéril das coisas. A transmissão deve ser pura, completamente pura. Vou- lhe dizer uma coisa em relação à forma do Aikido. Você faz um exercício de expressão corporal. Imagine que está tão preocupado com a tradição da forma e que está a ensiná-la a trinta pessoas. Ensina um determinado movimento à primeira pessoa, que por sua vez o ensina ao segundo, este ao terceiro e por aí adiante. Pede depois ao último dos trinta para mostrar o que lhe foi ensinado e vai ver o que lhe sai. (Risos) Por isso, é muito difícil transmitir ao nível da forma, daí ser melhor falar do conteúdo da forma, porque quando o fazemos a forma surge naturalmente. Se pararmos na forma, e se não houver conteúdo, então vai-se perder. Por isso, é muito importante, para mim, nas artes tradicionais, compreender o conteúdo da forma. Porque quando ensinamos para cinquenta pessoas, se não se falar no conteúdo, a forma perde-se facilmente. Nós fizemos essa experiência aqui, num estágio, foi muito engraçado, vimos como aquilo se deforma tão facilmente.

É preciso não cair num certo sectarismo da forma... é esquecer o espírito do Aikido que é a salvaguarda do Amor, como dizia O Sensei. Hoje, onde está esta declaração? Nas escolas esquecemo-la muitas vezes... no jogo emocional e passional onde cada um detém a verdade. Sobretudo quando hoje, tal como O Sensei dizia, "passar de Dan" não é essencial, o essencial é passar os "Dan do Amor" que é o mais importante de conservar. Se preservarmos os níveis de Dan técnico duma forma, o essencial não é esquecido? É preciso não esquecer que no final da sua vida, O Sensei insistiu sobretudo no "Shobu Aiki", que é o espírito da purificação na prática e que vai para além da forma...

Conheço alguns praticantes que têm uma excelente forma, mas que são uns verdadeiros desonestos perante a vida. Para mim é um Koan Zen: Onde está o essencial?

Talvez não tenham compreendido que a Vida representa uma procura de Verdade, é sobretudo uma rectidão comportamental, tanto em sociedade como na sua própria vida, a conciliação, a honestidade para consigo mesmo e os outros, a vontade, a dedicação, a tolerância, a justiça, etc. ... É necessário um tempo de análise e de observação para se captar a forma, mas enfim, você já sabe disso. A tradição é isso, não apenas a forma, mas o seu conteúdo.

12No Aikido há poucos alunos de O Sensei que se tenham dedicado exclusivamente a preservar os seus ensinamentos, com a preocupação de transmissão. Infelizmente para todos, Saito Sensei, é capaz de ser o único que, por circunstâncias especiais, estava em condições de o fazer, pelo privilégio de ter passado tanto tempo, e de uma forma tão intensa, ao lado do Fundador. Este facto limitou grandemente as nossas opções.
GS- Eu acho que não se devem repetir as coisas como um papagaio, não se deve ficar prisioneiro da forma. A certo momento o Mestre Ueshiba disse isso, caso contrário, a tradição morre. Se formos prisioneiros da forma, as coisas não funcionam. Também não devemos debruçar-nos demasiado sobre os aspectos exteriores. Depende dos professores, mas faz-me pensar que, para cada professor, é preciso raspar o verniz. Quanto mais perguntas um aluno fizer ao professor, mais inteligente ele fica. Se não lhe colocar dúvidas, ele torna-se burro. O papel do Professor (Sensei) é insubstituível, é ele que deve despertar no discípulo o gosto pela pesquisa e conservá-lo. O caminho que o aluno percorre está cheio de obstáculos a vencer. O aluno é constantemente tentado a parar no seu percurso, pensando que já compreendeu tudo e que já chegou ao fim, ou desencoraja-se logo nas primeiras dificuldades: Enquanto a flor brota, ela faz esforços para se alimentar, luta para sair da terra e abrir-se. Assim que desabrocha, ela morre. Os Mestres respeitam por vezes uma das grandes regras do Budo que é o silêncio. Logo que executamos um movimento, ele traça no espaço um simbolismo que nós não podemos revelar... não se pode inserir num método ou numa escola. Pois os símbolos estão inscritos no Homem e compete-lhe a ele revelá-los pelo Keiko. Os gestos respondem a uma ciência da energia que serve para modular o espírito. O não explicá-lo, convida à procura por si próprio, em si próprio. A não compreensão chama a experiência, único meio de conhecimento. Mostrar um movimento é fácil. Eu lembro-me de um caso, de um aluno, que passava a vida a dizer que sim, que tinha compreendido. Dizia sempre, "Sim, está bem". Eu perguntava-lhe se tinha compreendido e ele respondia sempre que sim. E era assim porque ele não sabia.

Os grandes mestres, a dado momento, não falam, mas eles sabem. Mas também há os que não falam porque não sabem. (Risos) E depois há os alunos papagaios que repetem as frases. Existe aquela história de um mestre e um aluno... este mestre tinha muito poucos alunos, seguidores. Um dia teve que partir de viagem e deixou o dojo entregue ao seu aluno. Quando ele regressou encontrou muita gente dentro do dojo. O que se tinha passado é que o seu discípulo tinha descoberto um sistema cada vez que alguém lhe perguntava algo, ele fazia um determinado gesto no ar. E então toda a gente ficava a pensar que ele era um grande mestre, pois cada vez que lhe faziam uma pergunta ele fazia o tal gesto e todos diziam, É realmente um grande mestre! Faz sempre assim. Quando o mestre começou a pensar sobre o que tinha acontecido no dojo para ficar com tanta gente, e sendo o aluno um pouco burro... talvez não tão burro (Risos)... ele percebeu que era por o aluno fazer sempre o tal gesto. Então, um dia, ele aproximou-se do seu aluno, por trás, sem este dar conta, e quando alguém lhe fez a pergunta, o mestre cortoulhe o dedo. Aí o aluno teve a sua iluminação. É preciso ter cuidado! A escola do Mestre Saito, em Portugal, é uma escola que eu respeito muito. Do é uma escola, é algo que reúne e não que afasta. É também respeitar as diferenças, é preciso aprender a respeitar as diferenças. Nós não podemos afirmar que temos a razão do nosso lado, toda a gente tem a sua razão. Nas Artes Marciais é preciso virar-nos na direcção dos objectivos, se eles forem os mesmos, então não há problema. Os problemas surgem quando os objectivos entre as pessoas não são os mesmos. Isso é claro e líquido! Se alguém não tem os seus objectivos dentro da Via, vai causar problemas. A expressão destes objectivos poderá ser diferente, mas o conteúdo será o mesmo. É por isso que não se pode criticar uma escola.

No Japão, em que a sociedade está cada vez menos permissiva, a Dai Nippon Butoku Kai, tem essa filosofia. Apesar das várias escolas representadas e das diferentes disciplinas e escalões etários, os objectivos são os mesmos e a prática comum encerra o espírito do principiante. É isso que eu tento transmitir de há uns anos a esta parte, esta noção de devermos respeitar as diferenças. Mesmo que eu tenha alguns alunos que se sintam vedetas, e que não conseguiram progredir na Via, isso é um problema deles. Se há cegos que seguem cegos, isso não é problema meu. Isso existe! Quando alguém, que se aproxima de nós, segue a mesma Via, surge logo a amizade, a harmonia. O problema surge quando alguém tem outros interesses, aí a situação tornase mais delicada, porque toda a gente sente que tem razão. Como a história de um grupo de cegos que queriam descrever um elefante, tocando apenas uma parte do animal. Um Mestre é paradoxal, pode dizer uma coisa a um e o oposto a outro. Por vezes as formas são diferentes mas o conteúdo é o mesmo. Por isso, a forma é relativa, mesmo a da escola do Mestre Saito. O que interessa é o seu conteúdo e é isso que nos junta.

13E o conteúdo não está na forma?
GS- Nem sempre! Para o Aikido, o primeiro aspecto formal, consiste na tomada de consciência de si próprio, compreender como os exercícios Calistécnicos harmonizam a potência do Ki e o pensamento, à estética corporal impregnada da nossa consciência - é a rectidão do corpo (postura justa), é o espírito justo. Tudo concentrado no nosso Seika Tanden (Hara), a fim de dirigir, por extensão, o Ki.

A segunda forma, consiste no Outro. Não há adversário, há a conciliação com o parceiro. É a união das energias.

Por fim poderíamos falar duma terceira forma, a noção do vazio, Sunyatra em sanscrito, é harmonizarmo-nos com o que nos rodeia, pôr-se de acordo com o "Princípio da forma", a acção na não acção.

Assim, deveremos ter atenção quando falamos duma forma, pois ela pode ser subtil ou grosseira.

O teatro No, por exemplo, procura o conteúdo da forma. Diz-se que um actor do teatro No é chamado de flor do teatro. Quem ele vê é quem ele é. Esse é um velho problema que os anciãos tentam resolver, mas para um jovem pode ser muito subjectivo. Quer dizer, uma forma que é feita sem ego, apenas para fazer a forma, já é um grande passo, já começa a ter o seu conteúdo. Ver, e ver-se. O gesto exprime o interior. Então aí começamos a ter um aluno que aprende a observar-se e a observar o movimento, a ser feito com o seu objectivo próprio e não com a forma, tornando-se assim, real. Eles aprendem isso no teatro No, ver e observar. Porque existe um espírito crítico, um juízo. A substância é o espírito! Saber dirigir o espírito (Ryu Gi) é essencial se desejamos praticar correctamente.

Quem é que pode ver o espírito de um movimento? Quem pode ver a técnica perfeita? Quem é que pode afirmar que a forma está perfeita? Quem? Ninguém! Podemos pensar caminhar para a perfeição, mas ela não existe em absoluto. Só na pintura. Há especialistas que sabem ver que um quadro é bom. Também há grandes músicos. Eu conheço um exemplo de um maestro famoso a quem afirmei que os chineses têm no violino e no piano grande virtuosismo, têm uma técnica excelente. Ele disse-me que eram maus músicos, que têm uma excelente forma na música, mas não são músicos. Compreende? É que há especialistas que sabem distinguir essas coisas. Por isso, a forma perfeita é, talvez, o vazio.

14Quando se pretende percorrer esse tal caminho na direcção da perfeição, devese compreender como se faz a forma e também o porquê, só assim se ganha a essência da forma.
GS- Estou de acordo consigo, a 100%. A forma tem de ser polida. Se tiver uma forma, e começar a poli-la ao fim de muitos anos, vai compreendê-la melhor. Pode começar a compreender isto, mas talvez ela ainda não brilhe no seu interior, como um diamante. O que dá valor ao diamante é ter sido polido. A isto chama-se, em japonês, kimotchi, que é um estado de alma. É o reflexo da forma, depois desta ter sido trabalhada.

Quando se é jovem é preciso trabalhar, mas ao envelhecermos começa a contar a experiência. E há poucas pessoas que saibam disto. Mesmo em Portugal, desde a altura em que eu conheci o país até aos dias de hoje, encontro uma grande diferença de mentalidades nos jovens, mesmo entre os meus alunos. Antigamente havia um ideal não sectário. É preciso ter atenção ao sectarismo na forma. É por isso que se perdeu, sobretudo na Europa, uma parte da tradição das Artes Marciais. Dantes haviam grandes judocas, mas hoje eles são menos. É preciso ter muito cuidado com o Aikido moderno, em geral, para que não aconteça como no Judo.

Provavelmente, daqui por uns anos no futuro do Aikido que se tornará mais desportivo e competitivo, irão surgir fortes problemas. Já começo a ver nos estágios internacionais, nomeadamente em França, que há pessoas que fazem pesos e alteres para ficarem fortes, começam a haver concursos de ego, a ver quem faz o nikyo mais forte.

Estão-se a esquecer de uma coisa no Aikido, é que nós oferecemos o nosso braço ou a nossa mão, para que o parceiro faça o que quiser. E é aí que ele pode fazer a forma pelo seu conteúdo ou fazer a forma estéril, a do nikyo que só magoa. É muito importante compreender isso, pois caso contrário estaremos a deformar o Aikido e como para mim Aikido é Budo, está-se a deformar o Budo. Perdeu-se a sua poesia e todas essas coisas. E eu tenho receio que o Aikido dito moderno se encaminhe para aí, para a eficácia e que lhe aconteça o mesmo que ao Judo. Quem é que hoje com 50 anos pratica Judo? Quase ninguém. A maioria termina árbitro. Antigamente, quando as pessoas chegavam a essa idade no Judo, faziam os kata e outros tipos de trabalho já mais elaborados. E podiam continuar a fazê-lo até aos 90 anos. Hoje em dia já não se vê nada disso no Judo, os velhos mestres que eu conheci já cá não estão, infelizmente. Haviam mestres de Judo que respeitavam o Budo.

15Eu tenho uma enorme preocupação pela transmissão correcta do Aikido, que deve ser a mais próxima possível do seu Fundador. Parece-me que este Aikido, a que se chama moderno, não está praticamente ligado à arte original, pelo menos é o que nos dizem os historiadores e os mestres que conviveram mais com O Sensei. Na sua opinião e experiência quais os mestres que considera terem recebido realmente o legado de O Sensei?
GS- Bom, isso é algo complicado de dizer, porque não se consegue saber quantos alunos ou quantas pessoas conseguiram isso. Jesus Cristo, por exemplo, teve doze pessoas. Apenas doze (Risos). Por isso não é tanto a quantidade que interessa. E também não é a ambição de pensar na transmissão de uma escola. É preciso ajudar a pessoa durante a sua passagem pela Terra, ou seja, ele deve ter a compreensão da sua passagem, pois é apenas um viajante passageiro pela Terra. É preciso, por isso, compreender que é efémero. Logo, a forma não deve ser tão preservada. O que realmente deve ser preservado é o homem do presente, é a pessoa aqui e agora. Para mim, não faço um cálculo futuro do tipo, "vou fazer uma escola para transmitir isto". Eu vou apenas transmitir aquilo que me foi transmitido, sem pensar que o estou a transmitir para daí a dez ou vinte mil anos. O que me interessa é que o meu aluno, que está aqui e agora, durante vinte minutos, esteja a viver o presente e a transmissão far-se-á através dum "puro presente" que terá seguramente o seu impacto no tempo. Isso é o mais importante na minha escola. É portanto uma aproximação mais espiritual. Se quiser, um pouco diferente da ideia de eu transmitir algo a uma pessoa, que depois passa a outro e depois a outro, etc.

Se o aluno compreendeu, através da sua própria experiência, ele próprio vai transmitir e tornar-se, por seu mérito, mestre. Conheço um caso desses em Marrocos, com uma pessoa que deixei como aluno meu e quando o reencontrei, mais tarde, era um mestre. Encontrei alguém cheio de amor e que o transmite, na sua escola. E isso, para mim, é que é importante: mais vale uma pessoa que transmite o amor pelas gerações, do que alguém que transmite apenas uma forma isolada, sem amor. Por isso, essa questão da forma não é um problema.

16Quem serão, dos seus alunos, aqueles que melhor compreenderão a sua mensagem, os que o acompanharam mais de perto, ao longo dos anos, ou aqueles que apenas tiveram um contacto temporário?
GS- Vou-lhe dizer uma coisa curiosa. Há pessoas que só compreenderam quando deixaram de praticar. E até conseguiram encontrar um rumo para a sua vida. Esta é uma forma de compreensão, mas há mais. Por isso, não consigo dizer se foram os que estiveram mais próximos ou não. É difícil. Mas se um aluno parte numa direcção que não é a da escola, eu não posso afirmar que ele tenha compreendido. É verdade que é difícil distinguir entre aqueles que compreenderam e os que não, mas eu sei que há muitos que sim e que trabalham em conjunto.

Quando eu comecei a praticar Aikido, para ver alguém executar um kotegaeshi cheguei a fazer mais de 300 Km em estradas geladas. Eu estava na Alemanha, nessa altura, e para ver o final de um movimento tinha de conduzir horas a fio. E ficava todo contente. Para mim, um movimento era algo de precioso. Estou a falar do Aikido, do Judo ou de qualquer outro. Sempre que aparecia um mestre para ensinar, era um acontecimento. Era uma época em que os mestres não se vendiam, faziam as coisas com outro carisma e outra visão filosófica da vida, com um certo dom. Evidentemente que era com uma grande alegria que se faziam tantos quilómetros só para se ver o fim de um movimento. Hoje em dia há imensos estágios e os jovens têm tudo, eles já sabem tudo. Criou-se então uma facilidade e um ideal, que se deve à sociedade, um fenómeno que se cria dentro de uma sociedade e perdeu-se assim um ideal dentro das Artes Marciais. Por exemplo, vemos que devido à competição no Judo há muitas crianças, porque as federações recebem muito dinheiro, o Estado ajuda os desportos de competição, e quanto mais competição, mais dinheiro há. Nesse momento, a própria arte é apanhada na sua armadilha, porque quanto mais competição há, menor é o número de pessoas idosas e capazes de competir. Por isso, o que espera um judoca no final da carreira é ser árbitro.

Já não há kata e por isso perde-se tudo. O que é que as pessoas que vêm em busca de algum ideal encontram? Nada! Houve o fenómeno do Bruce Lee, o da facilidade, mas quando as pessoas entravam num dojo e viam que era preciso aprender a cair, tudo era diferente. Depois houve também o falhanço de nós próprios, dos professores como eu, e outros, que não souberam transmitir alguma coisa. No meu entender, foram muitos os jovens que ficaram desiludidos com as Artes Marciais e voltaram-se para o desporto, acabando por preferir uma boa massagem, seguida de um bom duche. É engraçado ver como estas pessoas falam, mesmo os meus alunos: "O treino hoje foi horrível, nem transpirei!"

Neste momento toda a gente sabe tudo, ficou maçador. Deixou de haver troca, cada um faz as sua ilhas, nós inclusivamente, mas pelo menos a nossa porta está sempre aberta. Em relação à desilusão nas Artes Marciais, no Japão, é preciso ver o problema dos japoneses. Eles têm tendência a controlar tudo e isso trouxe alguma desilusão aos pioneiros europeus, que fizeram um enorme trabalho nas Artes Marciais e que não é muito reconhecido no Japão. Felizmente que a Dai Nippon Butoku Kai se preocupou com isso. As federações internacionais acabaram por afastar pessoas de grande qualidade, certas pessoas que buscavam outra coisa. Então, um dia destes não haverá senão actividades desportivas. Está quase, quase. E vamos perdendo, perdendo até perder a essência, isso é claro.

17O Mestre tentou trazer outros valores?
GS- Sim, tentei claro, através do movimento e de alguns dos meus alunos. Mas deverão ser eles a dizê-lo.
18Considera que se lhe pode prestar a homenagem, se bem que ainda seja cedo para tal, de ter criado uma forma de Aikido muito própria, pessoal, que o caracteriza a si especialmente.
GS- Não. Eu acredito que cada pessoa tem a sua forma própria de Aikido. Isso ainda é mais complicado, vamos ter que puxar pela cabeça... (Risos) A Escola de TenChi Internacional está ao mesmo nível que as outras escolas. Isso significa que é reconhecida como uma escola de Aikido, ao nível das graduações. No que me diz respeito, penso que cada pessoa tem o seu Aikido. E seria um erro transmitirmos o nosso próprio Aikido. Uma crítica que nos fizeram é que o nosso Aikido mais parece uma dança, que é muito largo, muito em espiral. A minha opinião é que se conseguirmos fazer grande, então, também conseguimos fazer pequeno, se quisermos. Porque se você faz pequeno também consegue fazer grande. E o movimento, a forma que nós desenvolvemos, em geral, é muito larga. E as pessoas imaginam que nós fazemos uma dança. Vamos mais para o aiki nage. Não fazemos um Aikido que possa ser feito dentro de uma cabina telefónica. É então uma forma aberta, mas não podemos dizer que criámos uma nova forma, isso seria demasiado ambicioso. Eu diria que os meus alunos não trabalham suficientemente o kokyu nage e o aikinage, precisam de um pouco mais de interioridade.
19Quais os mestres que considera terem sido decisivos para o seu desenvolvimento?
GS- Quem mais me tocou no início foi Aritoshi Murashige, que era realmente curioso. Ele vivia na Bélgica e trazia sempre consigo o seu sabre. Há até uma história, verdadeira, que se passou com ele. Um dia ele estava na estação de comboios de Bruxelas e alguém roubou uma carteira e, imediatamente, ele quis desembainhar o seu sabre para resolver a situação. (Risos) Era muito curioso. Outra pessoa foi o Tadashi Abe, que era muito forte e duro fisicamente. Foram estas as pessoas que mais me tocaram no início.

Mais tarde conheci outros mestres. Em Kisaburo Osawa encontrei uma forma muito interessante. A segunda pessoa foi Masamichi Noro, que era muito mais novo, mas influenciou a minha técnica de Aikido. A terceira pessoa foi Koichi Tohei, que eu considero um aikidoca extraordinário, representa a vertente do ki. Estas são as três personagens que mais me influenciaram naquela época. Não conheço esta nova geração. Tal como na pintura, eu não posso dizer que os outros são melhores ou piores. Eram estas as formas mais belas, na minha perspectiva. Outra pessoa que me agradou conhecer foi Itsuo Tsuda, por causa do método de respiração, e do ponto de vista intelectual foi interessante.

Entre outras pessoas que também me marcaram houve o meu mestre de Judo Kenchiro Abe (8ºDan), que era realmente muito avançado na via do Budo e Kiyoshi Nakakura que era muito próximo ao Aikido e ao Aikikai e conhecia muito bem o Mestre Ueshiba. Isto foi dentro do Aikido, porque fora houve outras personagens. Agora, ao nível da forma, os que eu gostava muito eram: Osawa, Tohei e Noro.

20Fale-nos um pouco mais de Nakakura Sensei e Tadashi Abe Sensei?
GS- Tenho maior facilidade em falar de Nakakura Sensei, pois estive mais próximo dele, uma vez que vivi na mesma casa que ele. Era um homem muito simples, era uma espécie de avô. Foi muito gentil comigo. O Tadashi Abe era mais novo, era uma pessoa diferente. Não os posso classificar da mesma forma. Para mim, Nakakura era muito superior, tinham uma grande diferença, em termos de compreensão do Budo. Quando conheci o Tadashi Abe, na Bélgica, nos anos 50, ele era muito novo. Mais tarde, no Japão, voltei a estar com ele por volta de 1970, pouco antes da sua morte.
21Como era praticar com Nakakura Sensei?
GS- Ah, era preciso acordar às cinco da manhã! (Risos) Havia uma primeira prática de manhã, depois fazíamos um intervalo, em que eu aproveitava para lavar o dojo dele. Depois havia outra prática e era assim o dia todo. Praticava-se muito e era duro.
22Que outros estrangeiros conheceu nas suas viagens ao Japão?
GS- Não vi lá muitos estrangeiros. Um deles, que foi comigo, foi o Dr. Claude Durix, que também é um grande conhecedor de Artes Marciais, mais teórico do que prático, mais preguiçoso. Ia lá de tempos a tempos. Mais tarde sim, quando participei no Campeonato do Mundo, conheci muitos estrangeiros.
23O Mestre depois de iniciar a sua prática de Artes Marciais na Europa, como surgiu em Marrocos?
GS- É muito simples. Houve duas fases em Marrocos. O meu pai tinha lá uma importante indústria de papel e por isso vivi lá, onde fiz os meus estudos. Mais tarde voltei lá, quando o Judo ainda estava no início e não se falava sequer de Aikido. O primeiro a mostrar Aikido foi Kenshiro Abe, um judoca da Dai Nippon Butoku Kai. Isso é histórico. Embora não se fale muito dele, foi quem trouxe o Tadashi Abe para a Europa. Existem fotografias de ambos juntos. Ele foi também o meu professor de Judo e creio que era Godan ou superior, em Aikido.
24Chegou a conhecer em Portugal o mestre de Judo, Masami Shirooka?
GS- Não, mas o Sr. Corrêa Pereira, da União Portuguesa de Budo, falou-me dele. Ele tinha mandado vir um judoca do Japão, às suas custas, para ensinar na Academia de Budo. Ele tinha alguma sensibilidade para as Artes Marciais, apesar de praticar pouco. Ele tinha uma certa ética nas Artes Marciais. Creio que ele tinha qualquer coisa, uma ideia filosófica muito especial, era alguém especial. Uma vez perguntei-lhe o que é que ele fazia na vida e respondeu-me que nada, não fazia nada. Era rico, não precisava de fazer nada. Era coleccionador. Coleccionava os maiores charutos do mundo ou as mais pequenas bíblias. Gravou também os kiai, meus e de outros. Era um homem, que agora com a minha idade, considero ter sido muito valioso pela sua ajuda ao Budo. Ele não se entendia com o Mestre Kobayashi, que estava em Portugal a ensinar Judo, porque ele fazia um Judo mais competitivo, federado, desportivo, enquanto ele preferia um Judo mais antigo. É interessante e engraçado, tudo isto!

O Corrêa Pereira foi alguém que fez algo, embora não se fale muito dele em Portugal, o que é pena. Ele foi gentil comigo. Eu é que não fui assim tão gentil com ele depois, porque nós, o grupo do Aikido que estava na Academia de Budo, dirigido pelo Sr. Engº. Carlos Manuel Pereira abandonámos a Academia a certa altura. Não fui eu que disse ao Manuel Pereira para abandonar, ele e todo o seu grupo de Karate da Academia é que decidiram abandonar. Esse grupo criou também toda uma outra geração de Artes Marciais. Mesmo assim, apesar do grupo de Aikido já não estar na Academia, quando eu vinha a Portugal, às vezes, ia jantar com ele, ou encontrava-me com ele. Ele dizia-me que os jovens não percebiam nada, dizia o mesmo que eu digo agora! (Risos) Quer dizer que estou a ficar velho. (Risos) Ele era uma personagem!

25Quer dizer, depois do Daniel Laurent ter deixado de ensinar Aikido na Academia foi substituído pelo Carlos Manuel Pereira.
GS- É esse mesmo, que fazia Karate também, foi presidente da Federação de Karate. Ele agora está no Brasil, vem cá de vez em quando, porque tem aqui família. Mas deixou de praticar. Tem nove filhos. Nove,... , por isso, não tem tempo para praticar. (Risos) Mas é um rapaz charmoso e era duro também. Foi ele que organizou e estruturou o Aikido em Portugal e considero isso importante. Foram os pioneiros, afinal de contas. O Daniel Laurent não tinha técnica, era cinto amarelo ou laranja, por isso o verdadeiro pioneiro foi o Sr. Engº. Carlos Manuel Pereira.
26O que eu tinha percebido é que o Carlos Manuel Pereira tinha estado apenas numa fase transição, enquanto o Mestre não se estabelecia em Portugal e o Daniel Laurent se tinha ido embora.
GS- Não, não. O Carlos Manuel ensinou durante muito tempo aqui. Eu penso que é importante saber quem foram as pessoas que desempenharam um papel no Aikido quando eu não estava cá em Portugal. O Carlos fez muito trabalho, mesmo em prol do Karate, não se limitou ao Aikido. Um dos seus primeiros alunos foi o Jaime Salazar Sampaio, que é dramaturgo, que foi o primeiro cinto negro português de Aikido. E isso para mim é que é importante, porque ele ainda pratica. Eles continuaram com o Aikido e quando eu vinha fazíamos demonstrações, pelo país e na televisão, ainda a preto e branco.
27O Carlos Manuel Pereira fez parte do grupo que formou o Karate competitivo.
GS- Exacto. Ele deixou um pouco o Aikido porque ficou demasiado preso por isso. Há uns quatro meses reencontrei-o e disse-lhe que mais valia ele ter ficado no Aikido que no Karate (Risos).
28O Mestre chegou a ter contactos com o Mestre de Karate Shotokai, Tetsuji Murakami, aquando as suas visitas a Portugal?
GS- Vi o Murakami umas duas ou três vezes. Foi um contacto muito superficial. Tivemos cá também o Sensei Hirokazu Kanezawa, no Dojo de Cascais, que ainda hoje eu considero ser um dos grandes mestres e referência mundial no mundo do Karate. Foi ele que os portugueses visitaram quando foram ao Japão. Eu visitava Tóquio quando eles estavam a aprender com o Kanezawa. Houve lá três ou quatro portugueses que praticaram duramente. Hoje em dia não se fala muito deles, mas eles lá, trabalharam muito, muito. Eu chamava-os os samurai portugueses.
29Quem são essas pessoas?
GS- O Vilaça Pinto, o Ptê e um terceiro cujo nome já não me recordo. Lembro-me bem do Vilaça, que eu respeito muito. Ele atravessou a Sibéria de combóio, começou por vender o seu carro e fez tudo pelo Japão. É um pouco por minha culpa, ele hoje diz que foi um pouco por minha causa que ele partiu para o Japão. Ele foi para lá para encontrar a realidade japonesa e lá encontrou-a bem, sem dúvida ... (Risos). Na altura a prática era muito dura, mesmo no Aikido. Nas Universidades os japoneses eram muito duros com os ocidentais. E no Karate era ainda pior. Muito, muito duro! Eu não posso falar pelo Vilaça, não sei se foi com o Kanezawa, ou um outro Mestre de Karate de quem esqueci o nome, mas creio que ele foi uchideshi e viveu com o seu mestre. Por isso, para mim, o Vilaça é alguém que realmente trabalhou muito bem e que eu admiro por esse motivo. Do Ptê não tive mais notícias, nem dos outros samurai.
30Alguma vez notou a influência do Aikido no Karate Shotokai do Mestre Murakami?
GS- Quem substituiu o Murakami foi o (Mitsusuke-ed) Harada, que veio do Brasil. Harada era aluno directo de (Shigeru-ed) Egami. E houve o tempo todo uma influência do Aikido, porque quando o Murakami ensinava a praticar em posturas muito, muito baixas eu brincava muitas vezes com aquilo e brincava com o Raúl (Cerveira, aluno do Mestre Murakami-ed) dizendo que eles estavam a imitar o Aikido. É verdade, houve uma influência. Eu lembro-me de ver o Noro e o Harada a divertirem-se numa espécie de combate entre os dois e a falarem precisamente disso. Eu creio que houve uma influência do Aikido nalguma corrente. Estou certo que houve algumas correntes influenciadas pelo Aikido, mesmo no Japão.
31Segundo eu sei, no Karate Shotokai, existe o conceito de irimi, que é uma coisa que parece só existir nesta escola de Karate.
GS- Irimi não é um conceito exclusivo do Aikido, é uma das grandes bases do Budo a noção de entrar. Não se recua, nas Artes Marciais, entra-se. É um conceito geral das Artes Marciais.
32O Mestre Nakakura também falava disso?
GS- Sim, a toda a hora (Risos).
33Gostaria de dizer mais alguma coisa?
GS- Gostei de conversar consigo, porque você fez irimi comigo (Risos).
34Muito obrigado, tive muito gosto em conhecê-lo.
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