TEXTOS E ENTREVISTAS
ENTREVISTA
Entrevista realizada em 1 de Fevereiro de 2001
Hoje em dia toda a gente fala de Aikido, mas não nos podemos esquecer dos pioneiros, não falo de mim, mas de outros, que investiram e ajudaram realmente o Aikido a desenvolver-se na Europa e particularmente em Portugal. Eu tinha um aluno, Daniel Laurent, que era cinto verde ou laranja, já não me recordo, que veio para Portugal trabalhar, ainda antes do 25 de Abril, e procurou um dojo para praticar. O local que encontrou foi a Academia Portuguesa de Budo, que mais tarde se tornou na União Portuguesa de Budo e onde, também mais tarde, vim a desempenhar funções de Director Técnico para o Aikido. Este era o único local, na altura, onde se praticavam Artes Marciais em Portugal. O Aikido nessa época não existia em Portugal. Havia Judo, mas reinava alguma confusão em torno dele, entre o Judo de competição e o tradicional, o Budo era mal compreendido, não se sabia se era ou não desportivo. Foi uma época difícil.
Entretanto, o Daniel Laurent, escreveu-me para Marrocos, onde eu vivia e foi lá ter comigo. Disse-me que tinha encontrado um dojo em Portugal e que a direcção pretendia fortemente uma demonstração de Aikido. Então vim a Portugal, a convite da União Portuguesa de Budo e fiz a primeira demonstração de Aikido em Portugal, já não me lembro do ano, mas fui muito bem recebido e eles gostaram bastante. Pediram-me depois para fazer um curso de iniciação ao Aikido. Juntamente com o Daniel Laurent, que ainda tinha um nível muito baixo de Aikido, e outros, começámos então a ensinar umas coisas simples como as quedas, tai sabaki, etc. A partir daí comecei a vir cá regularmente fazer estágios e dar aulas. Esta foi a primeira fase, foi o início. Depois seguiu-se a segunda fase.
A União Portuguesa de Budo começou a ter problemas. Dizia-se muita coisa da União Portuguesa de Budo, havia até alguma desconfiança política, embora eu pense que era apenas um grupo de pessoas que seguiam uma determinada linha de Budo. No seu seio começaram a haver divisões entre o que era desportivo e o que não era. Quer no Karate, quer no Judo. O Judo desportivo era representado pelo Mestre Kobayashi, que não foi o introdutor do Judo em Portugal, pois antes dele já outras pessoas tinham cá estado pela mão da União Portuguesa de Budo.
O Judo seguiu um rumo diferente do Budo, infelizmente, perdendo a sua essência, de tal forma que hoje nem se pode falar no Judo como uma arte do Budo. Houve cisões e fortes conflitos no Judo.
Entretanto o Daniel Laurent regressou a França, mas eu deixei cá dois alunos portugueses, que mantiveram um contacto bastante forte comigo, eram o Sr. Manuel Pereira e o Sr. Fernando Sotto Mayor, um era engenheiro e o outro médico. Vinham regularmente ao meu dojo em Marrocos e eu próprio vim a Portugal para organizar o primeiro estágio internacional de Aikido, em 1968, sob a égide da União Portuguesa de Budo. Convidámos pessoas de vários países e o estágio decorreu numa quinta em Bucelas, propriedade do Sr. Corrêa Pereira, Presidente da União Portuguesa de Budo. Fizemos também uma demonstração em directo para a televisão.
Nessa altura o Judo e o Karate eram facilmente aceites e compreendidos, mas o Aikido não, achavam-no estranho e não era fácil andar vestido de hakama (Risos). Então, de certa forma, foi preciso impor o Aikido em Portugal. Na demonstração de Aikido, em directo, houve um ataque frontal das outras artes ao Aikido, mas muitas destas pessoas acabaram por ficar nossas amigas. Foi mesmo o princípio, essa época foi formidável. Passámos por todas as etapas. Depois disso o Sr. Eng. Manuel Pereira estruturou um pouco o Aikido e disseram-me que viesse em definitivo para Portugal. Eu tinha também convites para ir para os Estados Unidos, São Francisco, Espanha, mas aconselharam-me a vir mesmo para Portugal. E foi por isto tudo que acabei por vir para Portugal. Chegámos também a fazer várias demonstrações em todo o país, por vezes num chão de betão ou madeira, porque na época não havia tatamis. Restam poucos alunos dessa época formidável, pois alguns morreram, outros casaram-se e a vida levou-os a seguirem outro caminho.
Tinha-se, entretanto, desenvolvido um outro pequeno grupo de praticantes de Aikido, diferente do nosso, dentro da União Portuguesa de Budo, com uma certa tendência para seguir a linha do Mestre Hirokazu Kobayashi. Eu conhecia-o bastante bem, porque estive cerca de um mês no seu dojo em Osaka, onde cheguei mesmo a dar aulas. A forma do Aikido do Kobayashi era bastante quadrada e não correspondia à minha forma, ao meu ideal. Ele era um bom especialista e uma boa pessoa. Chegou a pedir-me para ser seu representante aqui em Portugal, mas eu não aceitei, porque a forma dele não era aquela que eu pretendia. Então haviam dois pequenos grupos, um com o estilo do Kobayashi e outro com o meu.
Portanto, havia em Portugal duas escolas, uma na União Portuguesa de Budo e a outra éramos nós, mas todos praticavam juntos. Eu cheguei mesmo a ser o Director Técnico da União Portuguesa de Budo, durante algum tempo e fizemos trocas de alunos durante muito tempo, eu enviava cá os meus alunos e haviam alunos da União que iam a Marrocos. Por exemplo, o Vilaça Pinto, que era um excelente karateca e que fez nessa arte um excelente trabalho. Haviam ainda outros praticantes de Karate, aliás, posso dizer que o Karate nos ajudou um pouco. O Judo não, mas o Karate sim.
Enfim, é esta a história do Aikido em Portugal. Depois disto desenvolveu-se e os melhores alunos tornaram-se professores e surgiram vários dojo. Foi assim. Aconteceram tantas aventuras que davam para escrever um livro quem sabe, talvez um dia.
Relativamente à Aikikai houve sempre um intercâmbio. Um dos meus alunos em Marrocos, M'Barek Alaoui é, por exemplo, o Director Técnico da Federação de Aikido de Marrocos e é sétimo dan Aikikai. Ele vem cá regularmente, fazer estágios.
Quando eu estava no Japão, a Aikikai escondia um pouco a escola do Mestre Saito. Ninguém o conhecia e não se falava dele na Aikikai. Ele só começou a aparecer uns anos mais tarde. Mas conheci em Marrocos e na Europa, outros mestres também, como Tamura, Tada, Nakazano, Asai etc...
A nossa escola não está limitada apenas a um único ensinamento. O dojo está aberto a todos os ensinamentos, portanto, há especialistas que por cá passam de diversos prismas. É esse o espírito da escola, não estamos fechados. Essa é um pouco a minha história.
Eu creio que o kokyu nage e o aiki nage são a arte do Aikido. São a minha paixão e eu divirto-me, como uma criança ainda, quando faço kokyu nage. Para mim o aiki nage é o Aikido. Quando somos jovens não queremos passar pelo kotai, que é uma passagem obrigatória. Por isso, é perfeitamente possível interessarmo-nos pelo Yoga e pela sua tradição e sem fazer aquilo que eu chamo de Budo Bizarro. Não se deve misturar tudo Budo é Budo. Bu significa realmente parar as armas e o ideal seria nunca termos de desembainhar o sabre. Do é a Via, é o Caminho que devemos descobrir para nós próprios. Há que saber diferenciar. Asana é a postura. A etimologia da palavra postura significa, o local onde somos felizes. Há então uma relação com a Via, com o Do.
O espírito do Aikido é realmente japonês, é muito piramidal. A aproximação do Yoga é diferente, pois não há uma hierarquia tão forte como no Japão, onde é preciso ter muita atenção e cuidado com os rituais. Na Índia, é outro tipo de aproximação. Isto é verdade, é mesmo assim!
Não quero estar aqui a explicar o que é o Yoga, mas sim falar de dois percursos que se podem perfeitamente realizar em paralelo. Por um lado a abordagem japonesa, do samurai, por outro a do Yoga, do filósofo nu. Os gimnosufistas que os filósofos Gregos encontram nas epopeias de Alexandre "O Grande". Penso que estes dois caminhos podem ser complementares na evolução do Homem.
Não podemos deixar que a tradição nos faça recuar. A tradição não é algo monolítico, que esteja preso no tempo, que fique bloqueado, que se cristalize. Eu creio que a tradição é algo de concreto que se vai polindo como o diamante e que deve estar viva. Não é bom estar-se sempre voltado para o passado. É preciso sabermos servir-nos dos antigos mestres, não para voltarmos para trás, mas para caminhar em frente. Eles deram-nos tudo para estarmos justamente presentes no presente, não para estarmos presentes no passado. Há que diferenciar a presença no presente, da presença no passado. Portanto, para mim, tudo está sob a tradição.
Se prestar atenção ao Judo actual, os praticantes já não sabem fazer os kata, preferem levantar pesos, fazer musculação. Tudo bem, mas a essência do Judo perdeu-se, e era bela, tal como o aiki. Por exemplo, vemos coisas horríveis nos Jogos Olímpicos, com judocas que quase batem nos árbitros. Tudo isso, na minha opinião, é um afastamento da tradição. O cerimonial perdeu-se.
É preciso saber o que é que se entende por tradição. É algo muito importante e que se deve compreender bem. Há algum perigo nas escolas japonesas que ainda vivem demasiado no passado. É preciso compreender bem que existe um espírito universal. Nós não podemos imitar os japoneses. Era a mesma coisa que quando respirasse, respirava o mesmo ar de um japonês, o Ki não pertence a uma nação, não se deve imitar como um papagaio ou um macaco. A vénia não se deve fazer só porque se deve fazê-la. É preciso saber porquê! Pois é isso que nos faz avançar. Executar um cerimonial sem saber o significado, faz-nos retroceder, pois tornamo-nos mecânicos, assumimos uma filosofia mecanicista. Acho que aí está algo que nos pode empurrar para a frente, não repetir os ritos só porque são ritos. É assim que eu entendo o sentido do cerimonial, que é a base de tudo, é o que nos situa no Universo, o que nos harmoniza com o que nos rodeia. É isso a tradição. Se imitarmos exageradamente, qualquer dia estamos a fazer uma operação plástica para ficarmos iguais a um japonês. (Risos)
Considero que as Artes Marciais são uma transmissão universal, logo, é algo que não é exclusivamente japonês, mas universal. Vamo-nos servir da tradição japonesa porque é realmente algo de extraordinário, de interessante, onde, como o Karma Yoga nos ensina, cada gesto é um instante, é uma presença, e aí está algo que nos interessa, compreende? Agora, se for só para imitar aquilo que os japoneses fazem ou fizeram, então deixa de ter interesse. Isto não é algo que toda a gente tenha compreendido com facilidade, mesmo os meus alunos tiveram essa dificuldade. Consegue compreender isto?
O Yoga não é de todo estéril, porque quando um yogi nos transmite um asana ou uma postura, ele próprio já assimilou realmente a sua forma. É preciso ter atenção à transmissão estéril das coisas. A transmissão deve ser pura, completamente pura. Vou- lhe dizer uma coisa em relação à forma do Aikido. Você faz um exercício de expressão corporal. Imagine que está tão preocupado com a tradição da forma e que está a ensiná-la a trinta pessoas. Ensina um determinado movimento à primeira pessoa, que por sua vez o ensina ao segundo, este ao terceiro e por aí adiante. Pede depois ao último dos trinta para mostrar o que lhe foi ensinado e vai ver o que lhe sai. (Risos) Por isso, é muito difícil transmitir ao nível da forma, daí ser melhor falar do conteúdo da forma, porque quando o fazemos a forma surge naturalmente. Se pararmos na forma, e se não houver conteúdo, então vai-se perder. Por isso, é muito importante, para mim, nas artes tradicionais, compreender o conteúdo da forma. Porque quando ensinamos para cinquenta pessoas, se não se falar no conteúdo, a forma perde-se facilmente. Nós fizemos essa experiência aqui, num estágio, foi muito engraçado, vimos como aquilo se deforma tão facilmente.
É preciso não cair num certo sectarismo da forma... é esquecer o espírito do Aikido que é a salvaguarda do Amor, como dizia O Sensei. Hoje, onde está esta declaração? Nas escolas esquecemo-la muitas vezes... no jogo emocional e passional onde cada um detém a verdade. Sobretudo quando hoje, tal como O Sensei dizia, "passar de Dan" não é essencial, o essencial é passar os "Dan do Amor" que é o mais importante de conservar. Se preservarmos os níveis de Dan técnico duma forma, o essencial não é esquecido? É preciso não esquecer que no final da sua vida, O Sensei insistiu sobretudo no "Shobu Aiki", que é o espírito da purificação na prática e que vai para além da forma...
Conheço alguns praticantes que têm uma excelente forma, mas que são uns verdadeiros desonestos perante a vida. Para mim é um Koan Zen: Onde está o essencial?
Talvez não tenham compreendido que a Vida representa uma procura de Verdade, é sobretudo uma rectidão comportamental, tanto em sociedade como na sua própria vida, a conciliação, a honestidade para consigo mesmo e os outros, a vontade, a dedicação, a tolerância, a justiça, etc. ... É necessário um tempo de análise e de observação para se captar a forma, mas enfim, você já sabe disso. A tradição é isso, não apenas a forma, mas o seu conteúdo.
Os grandes mestres, a dado momento, não falam, mas eles sabem. Mas também há os que não falam porque não sabem. (Risos) E depois há os alunos papagaios que repetem as frases. Existe aquela história de um mestre e um aluno... este mestre tinha muito poucos alunos, seguidores. Um dia teve que partir de viagem e deixou o dojo entregue ao seu aluno. Quando ele regressou encontrou muita gente dentro do dojo. O que se tinha passado é que o seu discípulo tinha descoberto um sistema cada vez que alguém lhe perguntava algo, ele fazia um determinado gesto no ar. E então toda a gente ficava a pensar que ele era um grande mestre, pois cada vez que lhe faziam uma pergunta ele fazia o tal gesto e todos diziam, É realmente um grande mestre! Faz sempre assim. Quando o mestre começou a pensar sobre o que tinha acontecido no dojo para ficar com tanta gente, e sendo o aluno um pouco burro... talvez não tão burro (Risos)... ele percebeu que era por o aluno fazer sempre o tal gesto. Então, um dia, ele aproximou-se do seu aluno, por trás, sem este dar conta, e quando alguém lhe fez a pergunta, o mestre cortoulhe o dedo. Aí o aluno teve a sua iluminação. É preciso ter cuidado! A escola do Mestre Saito, em Portugal, é uma escola que eu respeito muito. Do é uma escola, é algo que reúne e não que afasta. É também respeitar as diferenças, é preciso aprender a respeitar as diferenças. Nós não podemos afirmar que temos a razão do nosso lado, toda a gente tem a sua razão. Nas Artes Marciais é preciso virar-nos na direcção dos objectivos, se eles forem os mesmos, então não há problema. Os problemas surgem quando os objectivos entre as pessoas não são os mesmos. Isso é claro e líquido! Se alguém não tem os seus objectivos dentro da Via, vai causar problemas. A expressão destes objectivos poderá ser diferente, mas o conteúdo será o mesmo. É por isso que não se pode criticar uma escola.
No Japão, em que a sociedade está cada vez menos permissiva, a Dai Nippon Butoku Kai, tem essa filosofia. Apesar das várias escolas representadas e das diferentes disciplinas e escalões etários, os objectivos são os mesmos e a prática comum encerra o espírito do principiante. É isso que eu tento transmitir de há uns anos a esta parte, esta noção de devermos respeitar as diferenças. Mesmo que eu tenha alguns alunos que se sintam vedetas, e que não conseguiram progredir na Via, isso é um problema deles. Se há cegos que seguem cegos, isso não é problema meu. Isso existe! Quando alguém, que se aproxima de nós, segue a mesma Via, surge logo a amizade, a harmonia. O problema surge quando alguém tem outros interesses, aí a situação tornase mais delicada, porque toda a gente sente que tem razão. Como a história de um grupo de cegos que queriam descrever um elefante, tocando apenas uma parte do animal. Um Mestre é paradoxal, pode dizer uma coisa a um e o oposto a outro. Por vezes as formas são diferentes mas o conteúdo é o mesmo. Por isso, a forma é relativa, mesmo a da escola do Mestre Saito. O que interessa é o seu conteúdo e é isso que nos junta.
A segunda forma, consiste no Outro. Não há adversário, há a conciliação com o parceiro. É a união das energias.
Por fim poderíamos falar duma terceira forma, a noção do vazio, Sunyatra em sanscrito, é harmonizarmo-nos com o que nos rodeia, pôr-se de acordo com o "Princípio da forma", a acção na não acção.
Assim, deveremos ter atenção quando falamos duma forma, pois ela pode ser subtil ou grosseira.
O teatro No, por exemplo, procura o conteúdo da forma. Diz-se que um actor do teatro No é chamado de flor do teatro. Quem ele vê é quem ele é. Esse é um velho problema que os anciãos tentam resolver, mas para um jovem pode ser muito subjectivo. Quer dizer, uma forma que é feita sem ego, apenas para fazer a forma, já é um grande passo, já começa a ter o seu conteúdo. Ver, e ver-se. O gesto exprime o interior. Então aí começamos a ter um aluno que aprende a observar-se e a observar o movimento, a ser feito com o seu objectivo próprio e não com a forma, tornando-se assim, real. Eles aprendem isso no teatro No, ver e observar. Porque existe um espírito crítico, um juízo. A substância é o espírito! Saber dirigir o espírito (Ryu Gi) é essencial se desejamos praticar correctamente.
Quem é que pode ver o espírito de um movimento? Quem pode ver a técnica perfeita? Quem é que pode afirmar que a forma está perfeita? Quem? Ninguém! Podemos pensar caminhar para a perfeição, mas ela não existe em absoluto. Só na pintura. Há especialistas que sabem ver que um quadro é bom. Também há grandes músicos. Eu conheço um exemplo de um maestro famoso a quem afirmei que os chineses têm no violino e no piano grande virtuosismo, têm uma técnica excelente. Ele disse-me que eram maus músicos, que têm uma excelente forma na música, mas não são músicos. Compreende? É que há especialistas que sabem distinguir essas coisas. Por isso, a forma perfeita é, talvez, o vazio.
Quando se é jovem é preciso trabalhar, mas ao envelhecermos começa a contar a experiência. E há poucas pessoas que saibam disto. Mesmo em Portugal, desde a altura em que eu conheci o país até aos dias de hoje, encontro uma grande diferença de mentalidades nos jovens, mesmo entre os meus alunos. Antigamente havia um ideal não sectário. É preciso ter atenção ao sectarismo na forma. É por isso que se perdeu, sobretudo na Europa, uma parte da tradição das Artes Marciais. Dantes haviam grandes judocas, mas hoje eles são menos. É preciso ter muito cuidado com o Aikido moderno, em geral, para que não aconteça como no Judo.
Provavelmente, daqui por uns anos no futuro do Aikido que se tornará mais desportivo e competitivo, irão surgir fortes problemas. Já começo a ver nos estágios internacionais, nomeadamente em França, que há pessoas que fazem pesos e alteres para ficarem fortes, começam a haver concursos de ego, a ver quem faz o nikyo mais forte.
Estão-se a esquecer de uma coisa no Aikido, é que nós oferecemos o nosso braço ou a nossa mão, para que o parceiro faça o que quiser. E é aí que ele pode fazer a forma pelo seu conteúdo ou fazer a forma estéril, a do nikyo que só magoa. É muito importante compreender isso, pois caso contrário estaremos a deformar o Aikido e como para mim Aikido é Budo, está-se a deformar o Budo. Perdeu-se a sua poesia e todas essas coisas. E eu tenho receio que o Aikido dito moderno se encaminhe para aí, para a eficácia e que lhe aconteça o mesmo que ao Judo. Quem é que hoje com 50 anos pratica Judo? Quase ninguém. A maioria termina árbitro. Antigamente, quando as pessoas chegavam a essa idade no Judo, faziam os kata e outros tipos de trabalho já mais elaborados. E podiam continuar a fazê-lo até aos 90 anos. Hoje em dia já não se vê nada disso no Judo, os velhos mestres que eu conheci já cá não estão, infelizmente. Haviam mestres de Judo que respeitavam o Budo.
Se o aluno compreendeu, através da sua própria experiência, ele próprio vai transmitir e tornar-se, por seu mérito, mestre. Conheço um caso desses em Marrocos, com uma pessoa que deixei como aluno meu e quando o reencontrei, mais tarde, era um mestre. Encontrei alguém cheio de amor e que o transmite, na sua escola. E isso, para mim, é que é importante: mais vale uma pessoa que transmite o amor pelas gerações, do que alguém que transmite apenas uma forma isolada, sem amor. Por isso, essa questão da forma não é um problema.
Quando eu comecei a praticar Aikido, para ver alguém executar um kotegaeshi cheguei a fazer mais de 300 Km em estradas geladas. Eu estava na Alemanha, nessa altura, e para ver o final de um movimento tinha de conduzir horas a fio. E ficava todo contente. Para mim, um movimento era algo de precioso. Estou a falar do Aikido, do Judo ou de qualquer outro. Sempre que aparecia um mestre para ensinar, era um acontecimento. Era uma época em que os mestres não se vendiam, faziam as coisas com outro carisma e outra visão filosófica da vida, com um certo dom. Evidentemente que era com uma grande alegria que se faziam tantos quilómetros só para se ver o fim de um movimento. Hoje em dia há imensos estágios e os jovens têm tudo, eles já sabem tudo. Criou-se então uma facilidade e um ideal, que se deve à sociedade, um fenómeno que se cria dentro de uma sociedade e perdeu-se assim um ideal dentro das Artes Marciais. Por exemplo, vemos que devido à competição no Judo há muitas crianças, porque as federações recebem muito dinheiro, o Estado ajuda os desportos de competição, e quanto mais competição, mais dinheiro há. Nesse momento, a própria arte é apanhada na sua armadilha, porque quanto mais competição há, menor é o número de pessoas idosas e capazes de competir. Por isso, o que espera um judoca no final da carreira é ser árbitro.
Já não há kata e por isso perde-se tudo. O que é que as pessoas que vêm em busca de algum ideal encontram? Nada! Houve o fenómeno do Bruce Lee, o da facilidade, mas quando as pessoas entravam num dojo e viam que era preciso aprender a cair, tudo era diferente. Depois houve também o falhanço de nós próprios, dos professores como eu, e outros, que não souberam transmitir alguma coisa. No meu entender, foram muitos os jovens que ficaram desiludidos com as Artes Marciais e voltaram-se para o desporto, acabando por preferir uma boa massagem, seguida de um bom duche. É engraçado ver como estas pessoas falam, mesmo os meus alunos: "O treino hoje foi horrível, nem transpirei!"
Neste momento toda a gente sabe tudo, ficou maçador. Deixou de haver troca, cada um faz as sua ilhas, nós inclusivamente, mas pelo menos a nossa porta está sempre aberta. Em relação à desilusão nas Artes Marciais, no Japão, é preciso ver o problema dos japoneses. Eles têm tendência a controlar tudo e isso trouxe alguma desilusão aos pioneiros europeus, que fizeram um enorme trabalho nas Artes Marciais e que não é muito reconhecido no Japão. Felizmente que a Dai Nippon Butoku Kai se preocupou com isso. As federações internacionais acabaram por afastar pessoas de grande qualidade, certas pessoas que buscavam outra coisa. Então, um dia destes não haverá senão actividades desportivas. Está quase, quase. E vamos perdendo, perdendo até perder a essência, isso é claro.
Mais tarde conheci outros mestres. Em Kisaburo Osawa encontrei uma forma muito interessante. A segunda pessoa foi Masamichi Noro, que era muito mais novo, mas influenciou a minha técnica de Aikido. A terceira pessoa foi Koichi Tohei, que eu considero um aikidoca extraordinário, representa a vertente do ki. Estas são as três personagens que mais me influenciaram naquela época. Não conheço esta nova geração. Tal como na pintura, eu não posso dizer que os outros são melhores ou piores. Eram estas as formas mais belas, na minha perspectiva. Outra pessoa que me agradou conhecer foi Itsuo Tsuda, por causa do método de respiração, e do ponto de vista intelectual foi interessante.
Entre outras pessoas que também me marcaram houve o meu mestre de Judo Kenchiro Abe (8ºDan), que era realmente muito avançado na via do Budo e Kiyoshi Nakakura que era muito próximo ao Aikido e ao Aikikai e conhecia muito bem o Mestre Ueshiba. Isto foi dentro do Aikido, porque fora houve outras personagens. Agora, ao nível da forma, os que eu gostava muito eram: Osawa, Tohei e Noro.
O Corrêa Pereira foi alguém que fez algo, embora não se fale muito dele em Portugal, o que é pena. Ele foi gentil comigo. Eu é que não fui assim tão gentil com ele depois, porque nós, o grupo do Aikido que estava na Academia de Budo, dirigido pelo Sr. Engº. Carlos Manuel Pereira abandonámos a Academia a certa altura. Não fui eu que disse ao Manuel Pereira para abandonar, ele e todo o seu grupo de Karate da Academia é que decidiram abandonar. Esse grupo criou também toda uma outra geração de Artes Marciais. Mesmo assim, apesar do grupo de Aikido já não estar na Academia, quando eu vinha a Portugal, às vezes, ia jantar com ele, ou encontrava-me com ele. Ele dizia-me que os jovens não percebiam nada, dizia o mesmo que eu digo agora! (Risos) Quer dizer que estou a ficar velho. (Risos) Ele era uma personagem!